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10 dez 2024 01:59


Faustão na fila do SUS

Não há motivos para polêmica no transplante de coração do apresentador Fausto Silva neste domingo, 27. Quando um dos maiores nomes da televisão brasileira entrou na lista de transplantes, isso é revelador da importância do próprio SUS.  Quando ele consegue fazer o transplante, deveria servir apenas para mostrar a excelência e confiabilidade do SUS na gestão dos transplantes de órgãos no país.

Não existe uma fila, com lugares marcados e imutáveis, onde quem chegou primeiro é operado primeiro. O mais correto é falar em uma lista dinâmica, em que os pacientes podem ocupar posições diferentes, em função do seu estado de saúde, do lugar onde mora e onde a doação está sendo feita, além da compatibilidade entre o doador e o receptor do órgão. No caso do Faustão, dentre todos os pacientes com urgência, ele reuniu as condições adequadas para ser o receptor do órgão doado. A gravidade do caso o colocou no topo da lista e o órgão doado era compatível. É assim que funciona, no Brasil e em qualquer outro lugar do mundo.

O Sistema Nacional de Transplantes (SNT) funciona e é confiável. E dois fatos confirmam essa afirmação: o Brasil é o segundo país do mundo em quantidade de procedimentos dessa natureza. Também tem o maior programa público de transplantes de órgãos, tecidos e células do mundo, por meio do Sistema Único de Saúde, o SUS, que financia cerca de 88% dos transplantes realizados em território nacional. À frente do Brasil só Estados Unidos. Isso deve ser motivo de orgulho, nunca de dúvida sobre um assunto em que somos referência para o resto do mundo.

O que coloca os Estados Unidos à frente do Brasil na realização de transplantes é a forma de captação de doações. Lá, eles têm um sistema de “voucher” pelo qual uma pessoa pode doar o seu órgão especificamente para alguém próximo e compatível, que tem algum problema de saúde indicativo da necessidade de transplante futuro. Esta forma de doação, portanto, cria um direito de “preferência” na fila para a pessoa que foi indicada. Outra forma cogitada naquele país, mais precisamente no estado de Massachusetts, propõe que pessoas que cumprem penas em estabelecimentos de detenção possam reduzi-las por meio de doação de órgãos. Além dos possíveis problemas de natureza ética a este tipo de proposta, há críticas severas ao sistema norte-americano, apontando que os mais pobres e as minorias raciais seriam menos beneficiadas.

Na Espanha, país que é tido como o mais eficiente na captação de órgãos para transplantes, a legislação coloca todo cidadão como potencial doador, salvo o caso de famílias de pacientes com morte encefálica que se manifestarem contra a retirada de órgãos. Ainda assim, a lei não é aplicada a ferro e fogo. Há todo um trabalho de convencimento feito por equipes profissionais com as famílias.

De fevereiro de 1998 a outubro de 1998, todo brasileiro também era doador potencial. Isso foi alterado por meio de Medida Provisória que modificou a Lei 9.434/07, que regulamenta a prática de transplantes no Brasil. Desde então, a doação de órgãos é voluntária e cabe ao doador potencial deixar isso claro, seja por registro em documento, seja acordado com os familiares (que podem ou não acatar essa vontade).

No dia a dia, em 45% dos casos de morte encefálica as famílias se recusam a liberar o procedimento. E não cabe a ninguém julgá-las por isso. A perda de um ente querido é extremamente traumática e nem todos encaram a possibilidade de doação do mesmo modo. Para uns pode ser libertador, para outros evoca medos e tabus. Há uma série de questões a serem consideradas, se desejamos convencer em vez de julgar.

O fato é que temos uma rede de mais de 600 hospitais autorizados a realizar transplantes. O SUS financia aproximadamente 90% de todos os procedimentos. Também dispomos de equipes médicas internacionalmente reconhecidas pelas realizações nessa área. O SUS, como em outras situações, mostra o tamanho de sua importância e de sua capacidade na preservação da vida e da saúde do povo brasileiro.

Uma pessoa pública e com recursos como Fausto Silva, que nunca imaginaríamos ver em uma  fila de serviço público de saúde, ter se beneficiado do SUS mostra o quanto o nosso sistema é inclusivo e que não faz distinção de classe socioeconômica, origem ou qualquer outra característica do paciente. Também mostra que o SUS é essencial para o conjunto da sociedade e não só para parte dela. De uma forma ou de outra, todos se beneficiam dele, como no caso do transplante do Faustão.

O nó da questão dos transplantes está no aumento da oferta de doações para resolver o drama das mais de 60 mil pessoas que vivem à espera de um doador. É nisso que devemos concentrar as nossas energias. O caso do Faustão é uma ótima oportunidade para trazer novamente a público essa importante discussão sobre a doação de órgãos no Brasil. Nem a má vontade de alguns, nem baixa estima de outros, deve nos distrair do principal. Somos um dos melhores do mundo. Podemos e devemos avançar.

Link de referência ao projeto de permuta de órgãos de detentos de Massachusetts:

https://extra.globo.com/noticias/mundo/projeto-em-massachussets-nos-eua-propoe-que-presos-doem-orgaos-em-troca-de-reducao-de-pena-25654331.html

Gutemberg Fialho é presidente do Sindicato dos Médicos do DF